sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Os EUA, o Oriente Médio e o lobby sionista

Ações e recursos de organizações pró-israelenses determinam, em grande medida, a política estadunidense em relação ao Estado judaico e seus vizinhos

 Ações e recursos de organizações pró-israelenses determinam, em grande medida, a política estadunidense em relação ao Estado judaico e seus vizinhos

Igor Ojeda,
da Redação


Mudança. A palavra-chave na campanha eleitoral do novo presidente dos Estados Unidos Barack Hussein Obama parece que não será levada em conta no que diz respeito a um tema fundamental: a política externa estadunidense para o Oriente Médio.

Pelo menos não a julgar por sua primeira declaração a respeito dos ataques realizados por Israel à Faixa de Gaza, que deixou 1400 mortos, em sua maioria, civis, incluindo inúmeras crianças: “Israel tem o direito de se defender”, disse o mandatário, referindo-se aos foguetes lançados pelo grupo islâmico Hamas na fronteira entre a Palestina e o Estado judeu.

A afirmação de Obama, entretanto, não foi novidade para muitas pessoas. Afinal, poucos acreditavam que a força do “novo” que o ex-senador vem carregando consigo seria suficiente para suplantar a estreita aliança existente há décadas entre EUA e Israel.

Estreita para alguns, estranha para outros. Estes últimos consideram que há tempos as políticas estadunidenses no Oriente Médio não seguem seus próprios interesses, e sim os do Estado judaico. A explicação? O enorme poder de influência que o chamado “lobby sionista” exerce nos EUA.

“Mesmo a partir de um ponto de vista imperialista, os Estados Unidos não têm um interesse particular em apoiar o genocídio israelense em Gaza. Isso é prejudicial para os EUA no Oriente Médio, pois o país está desesperadamente tentando criar uma aparência de 'estabilidade' para lidar com a destruição no Iraque e o fervor anti-estadunidense na região”, analisa Ramzy Baroud, jornalista palestino-estadunidense.

Intimidação

Um episódio ocorrido no início deste ano ilustra o contra-senso da política dos EUA para o Oriente Médio. No dia 8 de janeiro, o Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução que exigia o imediato cessar-fogo na Faixa de Gaza e a retirada das forças israelenses do território palestino, que estava sendo alvo de ataques.

Quatorze dos 15 países-membros do CS aprovaram a resolução; somente os EUA se abstiveram, mesmo tendo sido a própria secretária de Estado estadunidense, Condoleezza Rice, a preparar o documento. O esclarecimento para fato tão inusitado foi dado por ninguém menos que o primeiro-ministro israelense Ehud Olmert, em um discurso na cidade de Ashkelon:

“Na noite entre quinta e sexta [8 e 9], quando Rice queria liderar a votação no Conselho de Segurança no sentido de um cessar-fogo, não queríamos que ela votasse a favor. Fiz uma ligação e disse: 'ponha o presidente Bush na linha'. Falaram que ele estava num discurso na Filadélfia. Eu disse que não me importava. 'Preciso falar com ele agora'. Ele saiu do palanque e me atendeu. Eu falei a ele que os EUA não poderiam votar a favor de uma resolução como aquela. Ele, imediatamente, ligou para a secretária de Estado e disse a ela para não votar a favor”, contou Olmert.

Baroud conclui o raciocínio: “Imagine, o Olmert se gabando de como ele, num telefonema, conseguiu mudar completamente toda a agenda da política externa dos EUA. Isso nos indica que essa não é uma relação de simbiose”. Para ele, o relacionamento entre o governo estadunidense e o lobby pró-Israel é, ao contrário, “de interesses claros, transações de negócios e, às vezes, manipulação e intimidação”.

Lobby

A dimensão que tal lobby alcança foi detalhada no artigo – depois transformado em livro – “O Lobby de Israel e a Política Externa dos EUA”, publicado na London Review of Books, em março de 2006. Nele, os cientistas políticos John Mearsheimer e Stephen Walt resumem a questão: “outros grupos de interesse específicos conseguiram influenciar a política externa, mas nenhum lobby conseguiu desviá-la para tão longe do que o interesse nacional indicaria, e, ao mesmo tempo, convencer os estadunidenses de que os interesses de seu país e os do outro – no caso, Israel – são essencialmente idênticos”.

Segundo Baroud, historicamente, os EUA apoiavam uma agenda “equilibrada” para o Oriente Médio, para garantir na região uma relativa estabilidade que atendesse seus interesses. O jornalista cita o exemplo da invasão francesa, britânica e israelense contra o Egito em 1956, quando o então presidente estadunidense, Dwight Eisenhower, exigiu a imediata retirada de Israel da Península do Sinai e da Faixa de Gaza.

“Desde então, os interesses dos EUA na região permaneceram intactos. Mas o que mudou para que o governo dos EUA apareça como uma ramificação do Knesset [o parlamento de Israel]? O que mudou foi a força do lobby israelense e o nível de influência dos 'amigos' de Israel no Congresso, no Executivo e na grande mídia.”

Assistência

Os resultados de tamanha articulação foram aparecendo e se consolidando ao longo dos anos. De acordo com o artigo de Mearsheimer e Walt, desde 1976, o Estado judeu é o maior receptor anual de assistência direta, econômica e militar vinda dos EUA, o que o faz o maior beneficiário desde a Segunda Guerra Mundial, com um total de 140 bilhões (em dólares de 2004).

No plano militar, os estadunidenses já enviaram a Israel quase 3 bilhões de dólares para o desenvolvimento de sistemas de armamento, além de equipamentos de guerra como helicópteros Blackhawk e jatos F-16.

Além disso, a ajuda nessa área também vem se dando também em ocasiões de conflito, como a Guerra de Yom Kipur (1973), quando 2,2 bilhões de dólares em assistência militar de emergência foram concedidos.

Outro exemplo aconteceu em maio de 2002. Após Israel ter invadido novas áreas na Cisjordânia, a Câmara de Representantes dos EUA aprovou uma concessão de 200 milhões de dólares ao Estado judeu, para ser usado no combate ao terrorismo.

Diplomacia

Anualmente, o Estado judaico recebe 3 bilhões de dólares em assistência direta (20% do orçamento estadunidense para a ajuda externa). Desse total, o país está autorizado a gastar 25% na própria indústria de defesa, privilégio exclusivo entre os receptores de ajuda estadunidense.

A colaboração econômica e militar vem acompanhada, ainda, do apoio no campo diplomático. Ainda de acordo com Mearsheimer e Walt, desde 1982, os EUA vetaram 32 resoluções do Conselho de Segurança da ONU que eram críticas a Israel, número maior que o total de vetos de todos os outros membros do organismo que possuem tal poder. Além disso, os estadunidenses obstruem todos os esforços dos países árabes para que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) inspecione o arsenal israelense. (Leia mais na edição 309 do Brasil de Fato)


*BRASIL DE FATO

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

HOMENAGEM AOS 90 ANOS DA MORTE DE ROSA LUXEMBURGO E KARL LIEBKNECHT

HOMENAGEM AOS 90 ANOS DA MORTE DE ROSA LUXEMBURGO E KARL LIEBKNECHT



“A Liga Spartakus é apenas a parte do

proletariado consciente de seu objetivo que

indica, a passo e passo, a todas amplas as

massas trrabalhadoras suas tarefas históricas,

defendendo, em cada um dos estágios

específicos da revolução, o objetivo final

socialista e, em todas as questões nacionais, os

interesses da revolução proletária mundial.”

(O que quer a Liga Spartakus?, 1918)



Jornal da palavra operária nº 52 - LER-QI


Rosa Luxemburgo e a IV Internacional

(Rápidas Observações a respeito de uma importante questão)

Junho de 1935

No dia 15 de Janeiro de 1919 os dirigentes revolucionários do Partido Comunista Alemão (KPD) fundado no dia 1 de Janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, eram brutalmente assassinados pelo governo da social-democracia de direita, após a derrota do levantamento espartaquista, que se colocava como objetivo a derrubada do governo e a instauração de uma república soviética, o mais firme ponto de apoio da revolução russa de 1917 e do desenvolvimento da revolução internacional. Nos primeiros dias de novembro de 1918, enquanto ainda durava a I Guerra Mundial, os operários e soldados alemães acabaram com o Império Alemão e com a guerra e se confrontavam com os mesmos caminhos do proletariado russo. Rosa e Liebknecht foram as principais figuras do proletariado revolucionário, desde a grande traição da social-democracia em 1914, início da guerra, e por via da Liga Spartakus (depois KPD), levantaram a alternativa ao governo dos capitalistas, tragicamente defendida a ferro e fogo pelo SPD (social-democracia), que chegou ao poder por meio de uma genuína revolução para sufocar a própria revolução.


Tanto na França como em outros países, realiza-se, atualmente, uma tentativa para criar um suposto luxemburguismo que sirva de trincheira aos centristas de esquerda contra os bolchevique-leninistas1. Esta questão pode adquirir uma grande importância. Será preciso, talvez, escrever, em futuro próximo, um artigo de fundo sobre o luxemburguismo, o verdadeiro e o falso. Agora vou apenas esboçar a questão, traçando suas principais características.


Várias vezes já tomamos a defesa de Rosa Luxemburgo contra os grosseiros e imbecis ataques de Stalin e de sua burocracia. Continuaremos a fazê-lo. Fazendo-o, não obedecemos a quaisquer considerações sentimentais, mas aos preceitos da crítica históricomaterialista. Nossa defesa de Rosa Luxemburgo não é, entretanto, absoluta. Os aspectos débeis de suas teorias foram colocados a nu teórica e praticamente. As pessoas do SAP2 e os elementos que lhe são aparentados (ver, por exemplo, o Spartacus francês, diletante e intelectual e que faz “cultura proletária”; ou a revista dos estudantes socialistas que aparece na Bélgica; às vezes também A Ação Socialista belga etc.) só se servem dos lados fracos e das carências que, em Rosa Luxemburgo, não eram, de modo algum, preponderantes. Generalizam e exageram essas fraquezas ao infinito e constroem sobre isso um sistema absurdo. O paradoxo está no fato de que até os próprios stalinistas, em sua nova reviravolta, aproximam-se teoricamente dos lados negativos e desfigurados do luxemburguismo, sem mesmo falar dos centristas tradicionais ou dos centristas de esquerda do campo social-democrata.

É verdade, sem dúvida, que Rosa Luxemburgo opôs com paixão o espontaneísmo das ações das massas à política conservadora da direção social-democrata, particularmente depois da revolução de 1905. Esta oposição era do começo ao fim, revolucionária e progressiva. Rosa Luxemburgo compreendeu e começou a combater bem mais cedo que Lênin o papel de freio do aparelho ossificado do partido e dos sindicatos. Levando em conta o inevitável agravamento das contradições de classes, ela profetizava sempre a inelutabilidade e o itinerário das instâncias oficiais. Sob essas relações históricas e gerais, Rosa teve razão, pois a revolução de 1918 foi precisamente “espontânea”, isto é, foi realizada pelas massas malgrado todas as previsões e disposições das cúpulas do partido. Mas, por outro lado, toda a sucessiva história da Alemanha provou amplamente que com espontaneísmo apenas estamos longe de podermos vencer: o regime de Hitler é um argumento decisivo contra a afirmação de que sem espontaneísmo não existe absolutamente salvação.


A própria Rosa nunca se limitou à pura teoria do espontaneísmo, à maneira de Parvus3 que, mais tarde, deveria trocar seu fatalismo socialista-revolucionário pelo mais repugnante oportunismo. Ao oposto de Parvus, Rosa Luxemburgo buscava educar antecipadamente a ala revolucionária do proletariado e a organizá-la. Ela construiu na Polônia uma organização independente bastante rígida. No máximo poderíamos dizer que, na concepção histórico-filosófica do movimento operário de Rosa, a seleção preliminar da vanguarda, em relação às ações de massa que deveríamos esperar, não encontrou sua expressão. Enquanto Lênin, sem se consolar com os prodígios das ações que viriam, unia sem cessar e infatigavelmente os operários de vanguarda uns aos outros, ilegalmente ou legalmente, em organizações de massa ou clandestinas, em células e por meio de um programa rigorosamente delimitado.


A teoria do espontaneísmo de Rosa era uma salutar arma contra o aparelho estagnado do reformismo.Voltando-se às vezes contra o trabalho de Lênin no domínio da construção de um aparelho revolucionário, ela revelava, de maneira embrionária pelo menos, características reacionárias. Mas nela isso era apenas episódico. Ela era muito realista, no sentido revolucionário do termo, para retirar de sua teoria do espontâneo elementos de um sistema metafisicamente acabado. Na prática,ela mesma, a cada instante, punha por terra esta teoria. Após a revolução de novembro de 1918, iniciou com paixão o trabalho de reunir a vanguarda revolucionária. Malgrado seu livro escrito na prisão, mas não publicado, teoricamente bastante fraco, a respeito da revolução soviética, a obra seguinte de Rosa nos permite concluir com certeza que ela se aproximava, cada dia mais, das idéias de Lênin rigorosamente pesadas sobre a direção consciente e o espontaneísmo. Foi certamente também esta circunstância que a impediu de publicar seu escrito, do qual, mais tarde, se abusou de modo tão ignominioso contra a política bolchevique.


Tentemos, porém, aplicar à nossa época a contradição entre a ações de massas espontâneas e o trabalho de organização consciente de seus fins. Foram enormes os gastos em forças e desinteresse que as massas trabalhadoras de todos os países civilizados ou semicivilizados fizeram desde a guerra mundial! Não encontramos um precedente semelhante em toda a história da humanidade. Nesta medida, Rosa Luxemburgo tinha totalmente razão contra os filisteus e os cretinos do conservadorismo burocrático, “coroado de vitórias”. Mas, justamente o desperdício dessas incomensuráveis energias constitui um terreno favorável à grande depressão do proletariado e à vitória do fascismo. Podemos afirmar sem qualquer exagero: a situação mundial está determinada pela crise da direção do proletariado. O campo do movimento operário encontra-se ainda bloqueado pelas sobras poderosas das velhas organizações falidas. Depois de numerosas derrotas e desilusões, o grosso do proletariado europeu encontra-se fechado em si mesmo.


O decisivo ensinamento que ele tirou, consciente ou semiconscientemente, de suas amargas experiências é o seguinte: as grandes ações exigem uma direção à altura. Para os negócios do dia-a-dia os operários continuam a dar seus votos às antigas organizações. Mas apenas seus votos, em absoluto sua confiança ilimitada. Por outro lado, após a lamentável decomposição da Terceira Internacional, tornou-se muito mais difícil incitá-los a confiar em uma nova direção revolucionária. Nessa situação, recitar um monótono canto à glória das ações de massas relegadas a um futuro incerto, com o único fim de se opor a uma seleção consciente dos quadros para uma nova Internacional, significa realizar um trabalho reacionário do começo ao fim.


A crise da direção proletária não pode, evidentemente, ser resolvida por meio de uma fórmula abstrata. Trata-se de um processo cuja duração é extremamente longa. Mas trata-se não apenas de um processo puramente “histórico”, isto é, das condições objetivas da atividade consciente, mas de uma série ininterrupta de medidas ideológicas, políticas e organizativas, tendo em vista unir os melhores elementos, os mais conscientes do proletariado mundial sob uma bandeira sem mácula, de reforçar cada vez mais seu número e sua confiança em si próprios, de desenvolver e aprofundar sua ligação com camadas cada vez mais amplas do proletariado, em uma palavra: conferir novamente ao proletariado, em meio a uma situação nova, extremamente difícil e cheia de responsabilidades, sua direção histórica. Os confusionistas da espontaneidade deste recente modelo tem tão pouco direito de fazer apelo a Rosa Luxemburgo quanto os burocratas da Comintern (Terceira Internacional) a Lênin. Se deixarmos de lado tudo aquilo que é acessório e já ultrapassado pela evolução, temos todo o direito de colocar nosso trabalho pela IV lnternacional sob o signo dos “três L”, ou seja, não apenas sob o de Lênin, mas igualmente sob o de Luxemburgo e Liebknecht.


Leon Trotsky



1 Partidários do movimento pela Quarta Internacional, fundada em 1938.

2 SAP: Partido Socialista Operário, organização centrista alemã fundada em 1931 como produto da fusão de social-democratas de esquerda e setores do PC. Alguns de seus líderes apoiaram circunstancialmente as propostas de Trotsky em 1933 sobre a fundação de uma nova internacional, mas a maioria de seus membros retornou à socialdemocracia.

3 Alexander Parvus (1867 - 1924): militante russo que teve notável por ocasião da revolução de 1905 – posteriormente se desligou completamente da atividade revolucionária. Viveu na Alemanha, tendo se ligado a setores de direita da social-democracia.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Antitrotskismo: manual do usuário

Antitrotskismo: manual do usuário

Alvaro Bianchi*


Tomei conhecimento, com retardo de alguns dias, do artigo publicado pelo publicista português Miguel Urbano Rodrigues em O Diário.info, com data de 11 de dezembro de 2008, a respeito de Leon Trotsky. [1] E embora minha reação seja extemporânea creio necessário divulgá-la. Urbano Rodrigues é um veterano jornalista que durante seu exílio no Brasil trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo e na revista Visão. É também conhecido comunista e ocupou a frente do jornal Avante! após a Revolução dos Cravos, além de ter sido deputado na década de 1990 em Portugal. Mas o que motiva esta resposta não é a trajetória militante do jornalista, nem a difusão de seus textos no Brasil e Portugal e sim as idéias que tem lugar no artigo. Pode se objetar que não são idéias novas. De fato, como será visto mais adiante, trata-se da reprise de velhos temas do antitrotskismo sobre os quais se torna necessário voltar mais uma vez.

Em seu artigo, intitulado “Apontamentos sobre Trotsky: o mito e a realidade”, Urbano Rodrigues resmunga inconformado sobre um suposto paradoxo: ninguém hoje fala de Mikhail Gorbachev, mas “Trotsky continua a ser um tema que fascina muitos intelectuais da burguesia, alguns progressistas, e dezenas de organizações trotskistas na Europa e sobretudo na América Latina”. Admirado com esse “paradoxo” o articulista interroga-se: Por que essa sobrevivência de algumas teses do trotskismo no debate contemporâneo se contraditoriamente os partidos e movimentos trotskistas não são uma “força política com influência real no rumo de qualquer país”?

O “paradoxo” anunciado por Urbano Rodrigues é, evidentemente, artificial. O que tem a ver Gorbachov com Trotsky? Acaso o primeiro era um partidário, simpatizante ou mero admirador do segundo? Acaso as idéias de ambos eram similares em algum ponto? E quais são os tais “intelectuais da burguesia” fascinados por Trotsky? Em que “grandes universidades do Ocidente” eles estão? Que livros publicaram? Que artigos escreveram? Talvez o jornalista esteja fazendo referência ao monumental estudo de E. H. Carr sobre a revolução bolchevique. 2 Carr não era marxista e, em alguns pontos de sua narrativa, parece concordar com as posições de Trotsky, embora deixe claras suas inúmeras críticas. Mas afirmar que ele se encontrava fascinado pela vida e obra do revolucionário russo é no mínimo um exagero. Além do mais, infelizmente, Carr morreu há mais de 25 anos. Será que o espectro de sua enciclopédica pesquisa ainda assombra Urbano Rodrigues?

O suposto paradoxo apontado por Urbano Rodrigues parece encontrar apoio na identificação feita por ele entre antistalinismo e anticomunismo. Mas não há razão nenhuma para estabelecer tal identidade a não ser que o comunismo seja identificado com o stalinismo. Esse parece ser o ponto. Apegado a velhas idéias que há muito foram submetidas à critica devastadora o jornalista identifica o programa do comunismo e seu projeto de emancipação, com seu oposto, o stalinismo e o regime que ele deu lugar na União Soviética. A simpatia do jornalista por Stalin é assumida e em vários momentos se expressa apologeticamente. Protestando contra a satanização de Stalin, o jornalista escreveu:

“Sem a sua [de Stalin] acção à frente do Partido e do Estado, a URSS não teria sobrevivido à agressão bárbara do Reich nazi, sem ela a pátria de Lenine não se teria transformado em poucas décadas na segunda potencia mundial, impulsionando um internacionalismo que apressou a descolonização, incentivou e defendeu revoluções no Terceiro Mundo e estimulou poderosamente a luta dos trabalhadores nos países desenvolvidos do Ocidente.”

Não deixa de ser chocante que antes de ousar escrever sua engajada defesa do secretário-geral, Urbano Rodrigues apresente como uma façanha o fato de ter “sido dos primeiros comunistas portugueses a criticar o dogmatismo subjectivista de Stáline num livro apreendido pela ditadura brasileira”. Chocante não é o fato de ele achar que a crítica ao “dogmatismo subjetivista” vá ao âmago do fenômeno stalinista e sim o fato dessa crítica superficial ter sido feita “em 1968”, ou seja, doze anos depois do relatório Khrushchev e das referências aos “excessos” Stalin terem se tornado freqüentes na imprensa comunista internacional! O fato de Urbano Rodrigues estar no Brasil quando de sua façanha a torna ainda mais chocante essa “crítica”. No final dos anos 1950 e início dos anos 1960 a crítica ao stalinismo era corrente em diversas tendências da esquerda brasileira, não apenas trotskistas. Também no interior do Partido Comunista Brasileiro, organização que sempre se manteve fiel às diretrizes da União Soviética, essa era uma crítica freqüente. A façanha de estar doze anos atrasado inocenta Urbano Rodrigues do quê?

Mas a crítica de Urbano Rodrigues a Stalin, mesmo atrasada, estava longe de ser profunda. Ela limitava-se a “sua postura perante o marxismo e a condenação dos seus métodos e crimes”. Mas Stalin permanecia para o jornalista como “um revolucionário cuja contribuição para a transição do capitalismo para o socialismo na União Soviética foi decisiva”. O programa político do stalinismo permaneceria, assim, válido. Necessário seria, então, corrigir os excessos e mudar a “postura perante o marxismo”. Nos anos 1960 era essa a versão esclarecida do stalinismo. Hoje, quando a maior parte dos partidos comunistas definha perdendo peso social e relevância política essa é sua versão senil.

Evidentemente, não são os “intelectuais da burguesia” os que incomodam Urbano Rodrigues e sim as “dezenas de organizações trotskistas na Europa e sobretudo na América Latina”. É significativo que esse novo ataque ao trotskismo ocorra justamente quando essas organizações revelam uma forte tendência ao crescimento e à expansão, tendência simetricamente oposta à apresentada pelos antigos partidos comunistas.


Velhos e velhíssimos argumentos
É verdade que a demonização não contribuiu para a compreensão do fenômeno staliniano. Embora estivesse carregada de um juízo muito rigoroso sobre a personalidade do secretário-geral a crítica de Trotsky à burocracia soviética contribuiu de modo decisivo para uma visão política e social do fenômeno stalinista e do próprio Stalin que se afastava de toda tentativa de moralização e satanização. Para Trotsky, o “stalinismo é, acima de tudo, o trabalho automático de um aparelho sem personalidade no declínio da revolução”. [3]E em outra oportunidade escreveu de modo lapidar: “Stalin não é uma personalidade: ele é a personificação da burocracia”. [4]A burocracia soviética encontrou em Stalin sua encarnação, assim como após sua morte entrou seus sucedâneos. Por outro lado, o stalinismo sempre foi, para Trotsky não a encarnação do mal, mas um programa político consubstanciado nas teorias do socialismo em um só país e da revolução por etapas. Por essa razão, não é impróprio falar de stalinismo ou de partidos stalinistas após o relatório Khrushchev, quando os crimes de Stalin e o culto à personalidade foram denunciados mas seu programa político preservado.

Para tornar mais preciso esse conceito do stalinismo é necessário acrescentar que ele se define, também, pela simples negação – teórica, política e, em seus momentos, física – de seu antagonista. O stalinismo é, também, um antitrotskismo. Assim como o stalinismo reciclou-se, também o antitrotskismo o fez. Nos infames Processos de Moscou, Trotsky foi acusado de ser agente da Gestapo e liderar movimentos de sabotagem ao Estado soviético. Para Urbano Rodrigues “esse tipo de calúnias é tão absurdo, como expressão de um ódio irracional, como o esforço realizado por escritores anticomunistas e alguns governos para criminalizarem o comunismo como sistema comparável ao fascismo”. E tem razão.

Para além dos insultos e grotescas acusações, uma parte do arsenal do antitrotskismo consistiu no uso de passagens dos escritos de Lenin nos quais o dirigente do Exército Vermelho era alvo da crítica. Mas tarde essas passagens foram reunidas em coletâneas. [5]Isso, entretanto, foi insuficiente e prontamente se revelou necessário reescrever toda a história da revolução russa, operação que encontrou sua forma mais acabada na infame História do Partido Comunista da União Soviética (Bolchevique), publicada em 1938. A autoria desse livro de “história” era atribuída a uma comissão nomeada pelo Comitê Central, mas dez anos depois um artigo publicado na imprensa soviética atribuiu a verdadeira autoria a Stalin. [6]

Exceto por alguns renitentes arquistalinistas, o antitrotskismo depurou seus aspectos mais grotescos e procurou apresentar-se de modo mais sofisticado após a morte de Stalin. [7]Sua intensidade, entretanto paradoxalmente aumentou, dando lugar a uma verdadeira “síndrome antitrotskista”, nas palavras do historiador Gabriel García Higueras. A partir de meados dos anos 1960, respondendo, evidentemente ao crescimento do movimento trotskista, novos textos foram publicados. Robert McNeal, listou 29 livros contra Trotsky e o trotskismo publicados pela União Soviética entre 1965 e 1975 e García Higueras enumerou dez traduções para o espanhol desses trabalhos. [8]

Dentre essa literatura se destacam o incansável Mikhail Basmanov, além do não menos cansativo Leo Figuères. [9]Nesse período surgiu, também uma nova variante do antitrotskismo, a liberal e, mais recentemente, outra pós-soviética. [10]Os maoístas também deram sua esquizofrênica contribuição. Enquanto na França Kostas Mavrakis se esforçava para comprovar que sua crítica a Trotsky se distanciava da grosseira representação staliniana, em Pequim, onde não eram dados a tergiversar, dispensavam intermediários e publicavam uma alentada coletânea de textos de Stalin contra Trotsky e as oposições. [11]

Muito embora parte dessa bibliografia tenha eliminado as características mais brutais desse tipo de literatura, o antitrotskismo manteve ao longo do tempo alguns argumentos reiterados à exaustão. Não acrescentou novos e esclarecedores documentos, nem interpretações originais. Também não reagiu à publicação dos alentados estudos de E. H. Carr e de Isaac Deutscher, limitando-se a contrapor aos novos documentos e argumentos, simplesmente aquilo que estes desmentiam. Grosso modo, essa literatura não foi além daquilo que já estava na História do Partido Comunista da União Soviética (Bolchevique), depurando, em suas melhores versões, seus excessos.

Urbano Rodrigues dá mais uma volta nesse parafuso. Seu artigo é um pequeno manual do antitrotskismo. Não acrescentou nada de novo ao debate, reprisou temas e argumentos e, conforme será demonstrado a seguir, reproduziu de modo acrítico a contestada versão da historiografia staliniana. O argumento central do jornalista é muito simples: Trotsky e Lenin discordaram em várias oportunidades e polemizaram de modo muito duro. [12]Mas o que há de novo em afirmar que a posição de ambos era diferente na conferência de Zimmerwald, em 1916, assim como em Brest-Litovsk, em 1917, e no tocante aos sindicatos soviéticos, em 1921? Poderiam ser enumerados outros muitos casos, talvez o mais importante dos quais seja o desacordo no Segundo Congresso do POSDR e as críticas do jovem Trotsky à concepção de partido de Lenin. Mas não há nada a esse respeito que Basmanov, Figuères e Mavrakis não tenham dito, e antes deles o infame manual de história do Partido Bolchevique.

De modo pouco imaginativo Urbano Rodrigues decidiu retornar a velhos e gastos argumentos. Não citou nenhuma pesquisa recente sobre o tema, nem trouxe nenhuma nova informação; apenas repetiu. Sua descrição dos desacordos a respeito de Brest Litovsk é, nesse sentido, exemplar e, por essa razão, será aqui melhor discutida. Referindo-se aos desacordos no interior do partido Bolchevique, o jornalista acusa Alfred Rosmer e Rosenthal de terem omitido “que meses depois da sua adesão ao Partido Bolchevique, quando já exercia funções de grande responsabilidade, como dirigente, Trotsky divergiu de Lenine em questões de grande importância em momentos cruciais.” A acusação pode justificar-se com relação a Rosmer. De fato, em seu livro Moscou sous Lénine, o comunista francês não destaca essas diferenças, preferindo enfatizar aquelas que existiam com Bukharin e os “comunistas de esquerda”. Mas é completamente injustificada com relação a Rosenthal, que começa sua narrativa em 1927! [13]Além disso, Urbano Rodrigues poderia ter destacado o fato de que Isaac Deutscher, Pierre Brouè, Tony Cliff e Jean-Jacques Marie, simpatizantes de Trotsky e autores de incontornáveis biografias a respeito, detalharam à exaustão essas diferenças. [14]


De volta a Brest-Litovsk
Tem razão o jornalista, quando afirma que a “participação de Trotsky em Brest Litowski continua a ser tema polémico”. O stalinismo falsificou abertamente a história para criar boa parte dessa polêmica. Na História do Partido Comunista da União Soviética (Bolchevique) uma fantasiosa versão referente às polêmicas que tiveram ocasião no Partido Bolchevique à época das negociações em Brest-Litovsk foi apresentada. De acordo com essa versão, Trotsky, os “comunistas de esquerda” e os socialistas revolucionários de esquerda tramaram um complô para prender e assassinar Lenin, Stalin e Sverdlov:

“Mas o recente processo do anti-soviético ‘Bloco de Direitistas e Trotskistas’ (início de 1938) revelou agora que Bukharin e o grupo de “comunistas de esquerda” liderado por ele, juntamente com Trotsky e os socialistas-revolucionários ‘de esquerda’, conspiravam contra o governo soviético. Agora é sabido que Bukharin, Trotsky e seus companheiros conspiradores tinham determinado romper a Paz de Brest-Litovsk, prender V. I. Lenin, J. V. Stalin e Y. M. Sverdlov, assassiná-los e formar um novo governo com bukharinistas, trotskistas e socialistas revolucionários ‘de esquerda’” [15]

O livro cometia a proeza de falsificar os Processos de Moscou. No próprio juízo contra o “Bloco de Direitistas e Trotskistas”, Bukharin desmentiu essa versão, negando categoricamente qualquer plano para assassinar Lenin. Bukharin, entretanto, reconheceu que os “comunistas de esquerda” Karelin e Kamkov compareceram a uma reunião na qual os socialistas revolucionários fizeram a proposta de prender Lenin por 24 horas e assumir o comando da revolução, rompendo os acordos de Brest-Litovsk. Também afirmou que ambos comunistas rejeitaram veementemente a proposta. [16]Fica claro na narrativa de Bukharin que, apesar da tortura e chantagem nas quais esta havia sido forjada, ele não implicou Trotsky em nenhum complô. Sobre esse ponto, Bukharin, desafiando seus algozes ao menos uma vez, não disse nada que já não estivesse registrado nos anais da história, uma vez que o mesmo havia, em 1923, notificado o partido sobre essas conversas e o assunto havia sido comentado pelo jornal Pravda em 1924. [17]Mas para os dirigentes soviéticos a “confissão” de Bukharin embora forjada era insuficiente, foi necessário, assim, falsificá-la, atribuindo-lhe o que nunca disse.

A História do Partido Comunista da União Soviética (Bolchevique) também confundia as posições de Trotsky e Bukharin a respeito da paz, embora fossem significativamente diferentes. Segundo o manual,

“Os aliados nesse sinistro esquema eram Trotsky e seu cúmplice Bukharin, o ultimo juntamente com Radek e Pyatakov liderando um grupo hostil ao partido, mas camuflado sob o nome de “comunistas de esquerda”. Trotsky e o grupo dos “comunistas de esquerda” deram início a uma feroz luta no partido contra Lenin, exigindo a continuação da guerra. Essas pessoas faziam claramente o jogo da Alemanha imperialista e dos contra-revolucionários no país, pois agiram para expor a jovem república soviética, a qual não tinha ainda um exército, às garras do imperialismo germânico.” [18]

Segundo a História staliniana Lenin declarou que Bukharin e Trotsky “ajudaram o imperialismo alemão e entorpeceram o crescimento e desenvolvimento da revolução alemã.” [19]
No texto original Lenin fez referência a Bukharin e outros “comunistas de esquerda”, mas não citou uma única vez a Trotsky. [20]Além de adulterar citações, o manual também ignorava as resoluções do partido e dos soviets que haviam sido tomadas e criava outras que nunca tiveram nem poderiam ter tido lugar, uma vez que Lenin era, em fevereiro, minoria no Comitê Central Bolchevique. A conclusão óbvia dessa fantasiosa história era que Trotsky não passava de um traidor:

“No dia 18 de fevereiro, as negociações de paz em Brest-Litovsk foram rompidas. Embora Lenin e Stalin, em nome do comitê Central do Partido tivesse insistido que a paz deveria ser assinada, Trotsky, que liderava a delegação soviética em Brest-Litovsk, traiçoeiramente violou as instruções diretas do Partido Bolchevique. Ele anunciou que a República Soviética recusava concluir a paz nos termos propostos pelos alemães. Ao mesmo tempo informou os alemães que a República Soviética não lutaria e continuaria a desmobiliar seu exército. Isso foi monstruoso. Os imperialistas alemães não poderia desejar anda mais desse traidor dos interesses do país dos soviets.” [21]

Embora o manual de historia stalinista faça um amálgama entre as idéias de Trotsky e Bukharin, durante as negociações três eram as posições no interior do partido Bolchevique: Lenin, apoiado por Zinoviev e Stalin, propunha que fossem aceitas todas as condições dos alemães nas negociações; Bukharin e os chamados “comunistas de esquerda”, defendiam a ruptura das negociações e a declaração de uma “guerra revolucionária” contra as potências imperialistas; Trotsky, por sua vez, advogava uma política na qual os bolcheviques deveriam se retirar das negociações e decretar a paz unilateralmente, sem aceitar as condições dos alemães.

A política de Trotsky, resumida pela palavra-de-ordem “nem paz, nem guerra”, era uma tentativa de ganhar tempo nas negociações apostando na estabilização do poder soviético e num levante dos trabalhadores ocidentais contra a guerra. A recusa à “paz” significava, nessa perspectiva, a rejeição das condições impostas pelos alemães e a denúncia de seus propósitos belicistas e anexionistas. A posição do representante do novo Estado soviético nas negociações era, certamente, a mais complexa e implicava uma fina percepção das mudanças na política das grandes potências e o acompanhamento dos acontecimentos no movimento operário europeu e, não menos importante, no desenrolar da guerra no front ocidental.

Embora Lenin não concordasse com todas as conseqüências da posição de Trotsky, não foi com esta que debateu de modo mais firme e sim com a posição de Bukharin. A posição deste último parecia ser majoritária na base do partido, principalmente em Moscou. Em uma reunião realizada no dia 8 de janeiro com os delegados bolcheviques que participariam da reunião do 3º Congresso dos Soviets, a posição de Bukharin obteve 32 votos, a de Trotsky, 16 e a de Lenin, francamente minoritária, recebeu 15 votos. [22]A seguir foi feita uma consulta com duas centenas de soviets locais sobre o tema da paz. Apenas dois foram a favor da paz – Petrogrado e Sebastopol – e os demais votaram a favor da Guerra revolucionária. [23]

Um áspero debate teve lugar a respeito no interior do Comitê Central, durante sua sessão de 11 de janeiro de 1918. As teses escritas por Lenin para essa reunião criticavam de modo minucioso “os argumentos em favor de uma guerra revolucionária imediata”, mas não faziam menção a Trotsky ou a sua posição nos debates. [24]Após apresentar suas teses, Lenin encaminhou proposta pela qual o Comitê Central autorizava a protelar por todos os meios a assinatura da paz. [25]A resolução de Lenin foi aprovada e apenas Zinoviev, propenso a aceitar rapidamente as condições dos alemães, votou contra ela. Lenin mantinha, entretanto, seus desacordos com o representante dos soviets em Brest Litovsk, como fica claro em seu discurso nessa reunião. Segundo Lenin, a posição de Trotsky era “uma demonstração de política internacional. Ao retirar nossas tropas o que conseguimos é entregar aos alemães a República Socialista da Estônia”. [26]Lenin considerava que a posição de Trotsky poderia tornar-se perigosa, embora no momento não fosse, e levar a concessões ainda maiores.

Depois de aprovada a moção de Lenin com o voto de Trotsky, este último apresentou outra proposta de resolução que não era contraditória com a anterior: “Interrompemos a guerra e não assinamos a paz – desmobilizamos o Exército”, por nove votos contra sete. [27]As versões sobre essa votação são bastante contraditórias. Serge escreveu a respeito que “Zinoviev, Stalin e Sokolnikov apoiaram Lenin. Lomov e Kretinski votaram pela guerra; a fórmula apoiada por Trotski, Bukharin e Uritski – prolongar as negociações – obteve a maioria dos votos.” [28]Mas Serge parece confundir duas votações diferentes. Além do mais todos os historiadores são unânimes em afirmar que Lenin encaminhou e votou na proposta de prolongar as negociações. Há também um grande acordo sobre o número de votos que a proposta de Trotsky recebeu. A questão é, então se ela recebeu o apoio de Lenin na votação. Deutscher não afirma se Lenin votou ou não na posição de Trotsky e Carr escreve não ser possível determinar como votaram os membros do comitê central, mas Jean-Jaques Marie em uma pesquisa mais recente afirma que para “Lenin, desmobilizar o exército sem concluir a paz era ir demasiado longe: ele vota contra”. [29]O 3º Congresso dos Soviets realizado pouco depois aprovou resoluções semelhantes, bem como o relatório de Trotsky sobre as negociações de Brest Litovsk no qual sua linha era apresentada e defendida.

Foi com essas resoluções e nenhuma outra que Trotsky partiu novamente para Brest. Mas antes de fazê-lo reuniu-se privadamente com Lenin e concordou com este de que se sob certas circunstâncias, dentre as quais a retomada das operações militares pelos alemães, abandonaria sua política em favor de Lenin. Este último, então, perguntou: “Mas nesse caso você não apoiaria a palavra-de-ordem de guerra revolucionária, não é mesmo?” A resposta de Trotsky foi taxativa: “Sob circunstância alguma”. “Então”, ponderou Lenin, “o experimento pode não ser tão perigoso”. E a seguir concluiu jocosamente: “Nós só corremos o risco de perder Estônia ou Letônia em troca de uma boa paz com Trotsky”. [30]Obviamente, uma conversa como essa não poderia se sobrepor, a não ser em uma autocracia, às decisões do Comitê Central e do Congresso dos Soviets. Foi portanto com o mandato imperativo outorgado pelo partido e pelos soviets que Trotsky conduziu seu comportamento nas negociações de Brest Litovsk.

Durante os primeiros momentos das negociações a posição de Trotsky se revelou a mais adequada e um ponto de convergência entre as diferentes posições no interior do partido. Também permitiu evitar uma ruptura que pareceu a todos premente. Lenin, sem dúvida, a considerava um mal menor quando comparada à posição de Bukharin como fica claro em suas teses e nas diferentes ênfases de seu discurso. A posição de Trotsky, sintetizada na expressão “nem paz, nem guerra”, pretendia “esgotar as potencialidades revolucionárias e convencer os proletários do Ocidente da intransigência dos bolcheviques com respeito ao imperialismo austro-alemão.” [31]

Não era fácil, entretanto, convencer o proletariado europeu das intenções do novo governo soviético. Na social-democracia alemã ninguém entendia a atitude dos bolcheviques. Lenin relatou possuir um documento no qual as posições de duas frações do centro da social-democracia alemã estavam expressas: uma delas achava que os bolcheviques haviam se vendido ao alto-comando alemão e que as negociações de Brest-Litovsk eram jogo de cena; a outra, da qual Kautsky era mais próximo, não questionava a integridade dos bolcheviques, mas considerava sua conduta um “enigma psicológico”. [32]Mesmo na Rússia, liberais, mencheviques e populistas consideravam as negociações com os alemães como puro jogo de cena. [33]

A atitude de Rosa Luxemburg a respeito das negociações em Brest-Litovsk ilustra essa confusão. Em janeiro de 1918, a revolucionária alemã escreveu que os russos estavam escolhendo entre reforçar a Entente ou o imperialismo alemão. [34]Acreditava que a primeira consequencia do armistício era o deslocamento de tropas para o Oeste e o recrudescimento do insano morticínio que caracterizava a guerra imperialista. Esta opinião perdurou e ela voltou a escrever, em setembro do mesmo ano, que a capitulação dos bolcheviques em Brest-Litovsk teve como conseqüência um enorme reforço da política imperialista pangermânica e o enfraquecimento da revolução alemã. [35]Porém, o amigo de Luxemburg, Karl Liebknecht compreendeu melhor os objetivos da política de Trotsky em Brest Litovsk:

“É fácil condenar agora os erros de Lenin e Trotsky. Não é exato que a evolução futura da solução atual será pior do que seria um retorno ao começo de fevereiro em Brest. O contrário é o verdadeiro. Tal retorno teria feito aparecer a imposição final como uma vis haud ingrata. O cinismo espantoso, a crueldade bestial da exigência final alemã fizeram desaparecer todas as suspeitas. Do ponto de vista da propaganda revolucionária o efeito estimulante compensou muito o efeito calmante.” [36]

O texto de Liebknecht permite compreender o impacto do adiamento do acordo sobre a consciência do proletariado europeu. A postergação do desfecho permitiu denunciar as intenções belicistas alemãs e seu propósito de aniquilar o regime dos soviets. Escrevendo em 1926 a respeito da política externa soviética Christian Rakovsky registrou: “Se a vitória material ficou com a Alemanha e a Áustria, a vitória moral coube à delegação soviética”. [37]A frase de Rakovsky não era tentativa de salvar politicamente uma derrota. Quando Rakovsky escreveu seu artigo, em 1926, já se sabia o resto da história. Comprometidos com a frente ocidental, os alemães não tinham força para aniquilar o poder dos soviets. Pretendiam apoderar-se das reservas de trigo e carvão da Ucrânia, necessárias para a continuidade da guerra e deslocar seus exércitos para o Oeste o mais rápido possível. Ao mesmo tempo, a irrepreensível conduta bolchevique em Brest-Litovsk alimentou a revolução na própria Alemanha. Em novembro de 1918 soviets de operários e soldados foram constituídos em Berlim, o Kaiser Guilherme II foi derrubado, a república proclamada e o tratado imposto aos soviéticos cancelado. [38]

Sob vários aspectos a política de Trotsky era extremamente realista. Ele estava disposto esgotar todo o tempo possível, adiando ao máximo a assinatura da paz, mesmo correndo o risco de uma nova ofensiva alemã. Sua posição implicava em uma firme oposição à política da guerra revolucionária e pretendia ganhar tempo. Nesses pontos ela era completamente coincidente com os propósitos de Lenin. Trotsky, entretanto, não era tão favorável quanto Lenin a aceitar as condições dos alemães. Mas também não considerava que a fórmula “nem paz, nem guerra” fosse um princípio e estava disposto a assinar a paz aceitando as condições, caso ficasse claro que os alemães promoveriam uma nova ofensiva sobre o território soviético.

As negociações com os alemães deixaram de avançar na segunda semana de janeiro e se tornaram rapidamente inúteis. [39]Os alemães insistiam que a Ucrânia estivesse representada na reunião pelo governo burguês da Rada. Trotsky havia questionado essa participação, mas a aceitou enquanto esse governo manteve-se no poder em Kiev. No dia 21 de janeiro (3 de fevereiro) Trotsky recebeu por rádio uma mensagem de Lenin: “A Rada de Kiev caiu. Todo o poder na Ucrânia está em mãos do soviet.” A mensagem também informava a respeito dos sucessos obtidos na Finlândia, na região do Don e, finalmente, em Berlim e Viena, onde haviam sido criado soviets operários. Eufórico, Lenin escrevia: “Correm rumores de que Karl Liebknecht foi posto em liberdade e pronto liderará o governo alemão” [40]Os alemães responderam com uma provocação, assinando uma paz em separado com a Rada, um governo que não existia mais.

A agitação operária em Berlim e Viena teve o paradoxal efeito de fortalecer a facção belicista entre os negociadores alemães. Guilherme II ordenou, então ao chefe da delegação alemã em Brest-Litovsk, Von Kuhlmann, que apresentasse um ultimato aos russos. [41]Em 28 de janeiro (10 de fevereiro pelo calendário ocidental) o general Hoffmann, representante do Estado Maior alemão nas negociações deu o passo decisivo, exibindo um mapa no qual eram mostradas as anexações propostas pelos alemães e anunciando o ultimatum. Trotsky consultou Lenin a respeito e este respondeu em um telegrama: “Você conhece nosso ponto de vista; só foi confirmado ultimamente, principalmente depois da carta de Ioffe. Repetimos uma vez mais que não ficou nada da Rada de Kiev e que os alemães se verão obrigados a reconhecer isso, se já não o fizeram. Mantenha-nos informados. Lenin.” [42]

Quando os representantes da Alemanha e da Rússia soviética se reuniram novamente para apreciar o ultimato anunciado por Hoffmann, Trotsky anunciou, com base no mandato recebido pelo partido e pelos soviets, que o governo soviético considerava unilateralmente encerrada a guerra:

“Entrego aos Delegados da Aliança [Potências Centrais] a seguinte declaração escrita e assinada: ‘Em nome do Conselho dos Comissários do Povo, o governo da República Federal Russa informa os Governos e povos unidos em Guerra contra nós, os países da Aliança e neutrais, que se recusando a assinar uma paz de anexações, a Rússia declara, por seu lado, que o estado de guerra com a Alemanha, Áustria-Hungria, Turquia e Bulgária está encerrado. As tropas russas estão recebendo neste momento uma ordem para a desmobilização geral em todas as linhas do front.” [43]

A reação dos alemães foi de espanto. Todos ficaram em silêncio tentando compreender o que acontecia, até que o general Hoffmann gritou escandalizado: “Unerhort! (Inacreditável!)” A teatral retirada dos bolcheviques tinha o claro propósito de evidenciar a culpa dos alemães no fracasso das negociações de paz. No dia 14 de fevereiro, já em Moscou, Trotsky apresentou seu relatório sobre as negociações em Brest-Litovsk para o Comitê Central Executivo dos Soviets. Ao final da sessão, uma declaração oficial informou que “uma resolução foi votada a qual aprovou o conjunto da política da Delegação a Brest-Litovsk do Conselho de Comissários do Povo”. [44]

Imediatamente os alemães anunciaram que uma nova ofensiva sobre o território soviético teria lugar dentro de dois dias, violando o acordo inicial assumido em Brest Litovsk que previa um aviso com sete dias de antecedência. A ofensiva teve início no dia 17 de fevereiro. Na reunião do Comitê Central realizada no mesmo dia Trotsky votou com os “comunistas de esquerda” uma moção contrária a novas negociações de paz esperando notícias mais precisas sobre o avanço alemão. Mas no dia seguinte, quando essas notícias chegaram, Trotsky votou com Lenin. Quando os alemães apresentaram suas condições ainda piores para uma paz, Trotsky apesar de considerá-las humilhantes votou novamente, na reunião do Comitê Central do dia 23 de fevereiro, a favor da proposta pacifista defendida por Lenin. Embora a paz tivesse sido assinada em 3 de março, as exigências dos alemães continuaram e não estava descartado um ataque alemão. Mesmo assim o 7º Congresso Extraordinário do Partido Bolchevique da Rússia aprovou, em 6 de março, a ratificação do acordo, mais uma vez com o voto de Trotsky. Foi nessa ocasião que Lenin pronunciou o discurso citado por Urbano Rodrigues:

“Devo referir-me agora à posição do camarada Trotsky. Na sua actuação devemos distinguir duas fases: quando iniciou as negociações de Brest, utilizando-as excelentemente para a agitação, todos estivemos de acordo com ele. Trotsky citou parte de uma conversa comigo, mas devo acrescentar que concordamos manter-nos firmes até ao ultimato dos alemães, mas cederíamos após ele. Os alemães intrujaram-nos porque de sete dias roubaram-nos cinco. A táctica de Trotsky foi correcta enquanto se destinou a ganhar tempo; tornou-se equívoca quando se declarou o fim do estado de guerra, mas não se assinou a paz. Eu tinha proposto com toda a clareza que se assinasse a paz de Brest”. [45]

Lenin considerava que essa diferença com Trotsky era “historia passada, que não vale a pena recordar”. [46]De fato, era história que havia sido resolvida mediante votações no Comitê Central e no Congresso dos Soviets. O desacordo de Lenin com Trotsky era agora outro e não dizia respeito à assinatura da paz com os alemães e sim à assinatura da paz com o governo da Rada na Ucrânia, reinstituído em Kiev pelos alemães. No Congresso do Partido, Trotsky era favorável a aceitar os termos do acordo impostos pelos alemães, mas encaminhou um adendo à proposta de Lenin recusando explicitamente a assinatura de qualquer futuro acordo de paz com a Rada. Lenin se manifestou contrariamente a essa proposta, mas não se declarou favorável a assinatura de qualquer acordo com a Rada. Argumentou, pelo contrário, que “tudo depende da correlação de forças e do momento em que se produza a ofensiva de uns ou outros países imperialistas contra nós.” [47]

Após o Congresso adotar uma resolução na qual as novas condições para a paz impostas pelos alemães foram aceitas, teve lugar a eleição do Comitê Central do partido Bolchevique. O resultado dessa eleição é muito importante para avaliar o peso político dos diferentes dirigentes soviéticos. Lenin e Trotsky foram os mais votados, com 37 votos cada um; Bukharin obteve 36; Smirnov, 32; Zinoviev, 30; Skolnikov, 25; Stalin, 21; Radek, 19; e Obolensky, 7. Com a exceção de Lenin, que morreu em 1924 devido as seqüelas provocas por um atentado, todos os demais foram executados por ordem de Stalin. [48]


“As cabeças pensantes da revolução”
Um ponto central no argumento de Urbano Rodrigues é sua interpretação da passagem acima transcrita do informe político de Lenin ao 7º Congresso. Segundo o jornalista:

“A transcrição (parte de uma intervenção extensa) é esclarecedora porque a posição assumida por Trotsky (‘nem paz nem guerra’), ignorando as instruções de Lenine, levou os alemães a romper a trégua e desencadear uma ofensiva de consequências desastrosas, ocupando enormes extensões do país. Quando o Tratado de Paz foi finalmente assinado, as condições impostas foram muito mais severas do que as inicialmente apresentadas pelo Império Alemão.”

A transcrição é mesmo uma pequena parte de um texto muito mais extenso. Na edição das Obras completas, são trinta páginas nas quais em sua maior parte Lenin rebate os argumentos favoráveis à “guerra revolucionária” e em apenas três delas se dedica a discutir a posição de Trotsky. Lenin jamais afirmou que Trotsky agiu “ignorando (su)as instruções”. A razão para nunca ter afirmado isso é simples: não poderia fazê-lo a menos que sugerisse que Trotsky deveria ter rompido a disciplina do partido e dos soviets e o mandato para não assinar a paz que estes lhe haviam outorgado na reunião do dia 11 de janeiro. Lenin não concordava integralmente com a proposta aprovada nessa reunião, mas havia aquiescido com sua implementação e, por essa razão, não deixou de aprovar o conjunto da ação do representante dos soviets em Brest-Litovsk, conforme a moção votada pelo Comitê Executivo dos Soviets aqui citada. É por esse motivo que Lenin afirmou que “todos estivemos de acordo com ele (Trotsky)”.

No 7º Congresso, como visto anteriormente, o desacordo de Lenin com Trotsky dizia respeito ao acordo com a Rada ucraniana: “Às novas demandas que formula Trotsky, de que ‘prometa não assinar a paz com Vinnichenko [o líder da Rada]’, lhe respondo de que maneira nenhuma me comprometerei com qualquer coisa semelhante”. [49] A paz com a Rada, de fato não foi assinada, como queria Trotsky. Os alemães logo depuseram o governo ucraniano e o substituíram por um novo títere, deixando claro, desta vez que não tinham o menor interesse na auto-determinação ucraniana, como argumentavam na mesa de negociações em Brest-Litovsk.

A versão da infame História do Partido Comunista da União Soviética (Bolchevique) é, nesse aspecto, condizente e similar em seus termos com a de Urbano Rodrigues, uma vez que ela afirma, como já visto, que Trotsky “traiçoeiramente violou as instruções diretas do Partido Bolchevique”. Que “instruções” são essas às quais tanto Stalin como Urbano Rodrigues coincidentemente fazem referência? Elas só poderiam provir da conversa particular entre Lenin e Trotsky sobre a qual ambos fizeram referências no debate do 7º Congresso, mas que não era do conhecimento do partido até esse momento, ou, então, do telegrama de Lenin, do dia 28 de janeiro no qual ele dizia apenas: “Você conhece nosso ponto de vista”. Trotsky conhecia esse “ponto de vista”, sabia a diferença que existe entre um “ponto de vista” e uma instrução e, least but not least, estava ciente de que a posição de Lenin era, até então, minoritária no partido.

O estudo dos debates no interior do partido Bolchevique, à luz do contexto histórico no qual tiveram lugar, pode demonstrar a complexidade situação vivida e das posições políticas neles defendidas. Brest-Litovsk não foi uma exceção. A historiografia stalinista simplificou enormemente esses debates apresentando-os sempre de modo maniqueísta. Urbano Rodrigues não fez diferente. Desse e de outros episódios nos quais Lenin e Trotsky divergiram, todos analisados de modo constrangedoramente superficial e a partir dos mesmos precários documentos concluiu:

“a tentativa dos seus epígonos e de Historiadores burgueses de o guindar a ‘companheiro de Lenine’, colocando-o ao nível do líder da Revolução, falseia grosseiramente a História. Trotsky não foi nem o revolucionário puro que os trotskistas veneram como herói da humanidade, nem o traidor fabricado por Stáline.”

Evidentemente não faltaram aqueles que procuraram canonizar Trotsky ou transformar o trotskismo em uma espécie de religião. Tendências similares podem ser encontradas em outros movimentos políticos vinculados à história do movimento operário, mas nenhum deles foi tão longe na mistificação como o stalinismo. As quatro mais importantes biografias sobre Leon Trotsky escritas a partir de perspectivas que simpatizam com o revolucionário russo – a de Deutscher, Cliff, Brouè e Marie – estão muito longe de considerar Trotsky um revolucionário puro e analisam de modo detalhado as diferenças entre ele e Lenin.

Mas afirmar que Trotsky não era, aos olhos do movimento comunista internacional de sua época, “companheiro de Lenin”, isto sim “falseia grosseiramente a História”. Antes mesmo da fundação da Internacional Comunista os nomes de Lenin e Trotsky vinham juntos na imprensa socialista. Rosa Luxemburgo, conhecedora profunda dos assuntos russos, por exemplo, escrevia, em 1918, a respeito das “cabeças pensantes da revolução russa, Lenin e Trotsky” e referia-se aos “políticos geralmente lúcidos e críticos que são Lenin, Trotsky e seus amigos”. [50]Também não poupava elogios ao registrar: “Toda a coragem, a energia, a perspicácia revolucionária, a lógica da qual um partido revolucionário pode fazer prova em um momento histórico, tiveram Lenin, Trotsky e seus amigos”. [51]A identidade estratégica entre Lenin e Trotsky era, para ela, total a ponto de referir-se à “teoria da ditadura segundo Lenin e Trotsky” e, logo adiante, para simplificar, unir exageradamente os dois personagens em um só, escrevendo sobre a “teoria de Lenin-Trotsky”. [52]A referência conjunta a “Lenin e Trotsky” era comum também nos textos de Karl Liebknecht. [53]Nem Luxemburg, nem Liebknecht fizeram ao longo de seus escritos referência a Stalin, até então um completo desconhecido. Sabe-se que os dirigentes da Liga Spartacus não eram epígonos de Trotsky. Seriam eles, então, os “historiadores burgueses” aos quais o jornalista faz referência?

A relação entre Lenin e Trotsky foi sempre psicologicamente tensa, mas de mútuo respeito e admiração. Seria um equívoco comparar essa relação, com os profundos laços de amizade que uniram Marx e Engels. Politicamente, os dois dirigentes soviéticos divergiram entre si um grande número de vezes, mas a partir de 1917 a convergência estratégica entre ambos tornou-se profunda. Lenin retornou à Rússia em abril e anunciou sua nova posição na qual abandonava a palavra de ordem de “ditadura democrática do proletariado e dos camponeses”. Em agosto do mesmo ano, Trotsky aderiu ao Partido Bolchevique. Uma nova fase dessa complexa relação teve início. Essa convergência não impediu que tivessem idéias próprias e muitas vezes conflitantes sobre vários pontos. Suas personalidades eram fortes e defendiam seus pontos de vista de modo enfático. Não eram os únicos a proceder desse modo no interior do Partido Bolchevique.

Após a morte de Lenin teve início uma dura luta política e ideológica no interior do Partido Bolchevique. Para sustentar as novas posições de poder ocupadas depois da morte de Lenin, Zinoviev, Kamenev e Stalin lançaram uma ofensiva sobre a história da revolução russa, procurando diminuir o lugar de Trotsky nela e afastá-lo do legado lenineano. Lenin anteviu esse movimento e, por essa razão, em seu testamento escreveu que o fato de Trotsky não ser um velho bolchevique não o desmerecia e era coisa que deveria ser deixada para trás. Certamente não o foi. Trotsky respondeu com todas suas energias esse ataque levado a cabo sobre o terreno da história e produziu como resposta algumas das obras-primas da historiografia marxista: A revolução desfigurada (1929), Minha vida (1930) e História da Revolução Russa (1932). Mas por razões de ordem política optou por diminuir suas opiniões sempre que estavam confrontadas com Lenin. Continuar a insistir com isso é um erro. Lenin e Trotsky precisam recuperar seu lugar real como homens de grande envergadura política, moral e intelectual, mas também como seres humanos que cometiam erros e refletiam a respeito deles. Mas para tal é preciso responder vivamente cada vez que as velhas e desgastadas idéias do antitrotskismo staliniano reaparecem. Golpe a golpe; verso a verso.

pstu.org.br

NOTAS

* Professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp, secretário de redação da revista Outubro e coordenador do Grupo de Estudos sobre o Marxismo de Leon Trotsky, sediado no Centro de Estudos Marxistas da Unicamp (Cemarx).

[1]Miguel Urbano Rodrigues. Apontamentos sobre Trotsky: o mito e a realidade. O Diario.info, 11 dez. 2008. Disponível em: http://www.odiario.info/articulo.php?p=973&more=1&c=1

[2] E. H. Carr. The Bolshevik Revolution 1917-1923. New York : MacMillan, 1950-1953, 3v.

[3] Leon Trotsky. Ma vie. Paris: Gallimard, 1953, p. 592.

[4] Leon Trotsky. Ce que je pense de Staline. In: Oeuvres. Grenoble: Institut Leon Trotsky, 1986, p. 214.

[5] P. ex. V. I. Lenin. Trotzky julgado por Lenine. Rio de Janeiro: Calvino, s.d..

[6] Central Comitte of the C.P.S.U(b). History of the Communist Party of the Soviet Union (Bolsheviks). Nova York, International Publisher, 1939. Para os antecendentes desse livro, bem como para a questão de sua autoria, ver Raymond Garthoff. The Stalinist revision of History: the case of Breast-Litovsk. World Politics, v. 5, n.1, p. 66-85, 1952.

[7] O arqui ou arqueostalinismo ainda persiste. Em uma bizarra biografia de Stalin na qual seu autor procura construir uma aparência de cientificidade citando alguns estudos pouco conhecidos ao mesmo tempo em que trunca e descontextualiza as citações de praxe, é afirmado: “Com efeito, em 1936, estava evidente para qualquer pessoa, analisando lucidamente a luta de classes no nível internacional, que Trotski tinha degenerado a ponto de se tornar um joguete das forças anticomunistas de todo gênero”. O mesmo biografo justifica os processos contra Piatakov afirmando que ele “tinha utilizado em grande escala especialistas burgueses para sabotar as minas”. A acusação é ridícula, mas o autor a torna mais grave, uma vez que a atribúi aos trotskistas, sem mencionar que no final da década de 1930 Piatakov havia rompido com Trotsky (ver Ludo Martens. Stalin: um novo olhar. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 178 e 185).

[8] Robert H McNeal. The revival of Soviet anti-trotskysm. Studies in comparative Communism. V. X, n. 1-2, p. 5-17, 1977. Gabriel García Higueras. Trotsky em El espejo de la história. Lima: Tarea Educativa, 2005, p. 228

[9] M. I. Basmanov. La esencia antirrevolucionaria del trotskismo contemporâneo. La Habana: Ciencias Sociales, 1977; Os trotskistas e a juventude. 2 ed. Lisboa : Estampa, 1975; La fraseología “izquierdista” al servicio de los enemigos de la paz: el trotskismo y la distensión internacional. Moscovo: Nóvosti, 1975, M. I. Basmanov et al. El falso profeta: Trotski y el trotskismo. Moscou: Progresso, 1986; e Léo Figuères. O trotskismo. 2 ed.. Lisboa: Estampa, 1974.

[10] A vertente liberal pode ser ilustrada por Joel Carmichael. Trotsky: an appreciation of his life. London: Hodder and Stoughton, 1975. A vertente pós-soviética é representada, dentre outros, por Dmitrii Antonovich Volkogonov. Trotsky: the eternal revolutionary. New York: The Free Press, 1996; Ian D. Thatcher. Trotsky. London: Routledge, 2003 e Geoffrey Swain. Trotsky. Londres: Longman, 2006. Embora Urbano Rodrigues goste de inventar paradoxos, não se deu conta do paradoxo que representa a existência, ao lado do antitrotskismo staliniano de outros – liberal e pós-soviético – que apresentam grande coincidência de argumentos com o primeiro, embora com propósitos diferentes.


[11] Kostas Mavrakis. Du trotskysme: questions de theorie et d histoire. Paris: F. Maspero, 1971 e J. V. Stalin. On the opposition, 1921-1927. Pequim: Foreign Languages Press, 1974. Alguns desses textos de Stalin foram republicados logo a seguir em Portugal Josef Stalin. Escritos sobre o trotskismo, 1924-1937: Trotskismo ou leninismo?. [Lisboa]: Pensamento e Acção, 1975 e Trotskismo ou leninismo. Lisboa: Seara Vermelha, 1976.

[12] Quem quer que conheça as obras de Lenin e Trotsky saberá que não havia uma “veemência verbal pouco comum”, como afirma Urbano Rodrigues. Os termos utilizados no debate não diferem daqueles que dirigiram a outros bolcheviques em ocasiões diversas. Podem-se censurar os excessos retóricos que marcavam o modo russo de conduzir o debate político, mas enquanto Lenin viveu essa veemência não se transformou em insultos ou falsas acusações como ocorreu com a publicística staliniana após 1924.

[13] Alfred Rosmer. Moscou sous Lénine. Paris: Maspero, 1970 e Gerard Rosenthal. Avocat de Trotsky. Amadora: Bertrand, 1975.

[14] Isaac Deutscher. Trotski. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, 3 v.; Pierre Brouè. Trotsky. Paris: Fayard, 1988; Tony Cliff. Trotsky. Londres: Bookmarks, 1990, 4v.; e Jean-Jacques Marie. Trotsky: révolutionnaire sans frontières. Paris: Payot, 2006. Urbano Rodrigues cita Deustcher, mas claramente desconhece a obra de Brouè, Cliff e Marie, uma vez que afirma que nas últimas décadas não foram publicados “livros importantes que acrescentem algo de significante”. Sobre esses autores é preciso esclarecer que Deutscher afastou-se das idéias de Trotsky e da Quarta Internacional, o que fica evidente no terceiro volume de sua biografia.

[15] Central Comitte of the C.P.S.U(b). History of the Communist Party of the Soviet Union (Bolsheviks). Nova York, International Publisher, 1939, p. 218.

[16] Last Plea of Bukharin. The Slavonic and East European Review, v. 17, n. 49, 1938, p. 128-129.

[17] Raymond Garthoff. Op. cit., p. 71.


[18] Central Comitte of the C.P.S.U(b). Op. cit., p. 216.

[19] Idem, p. 217.

[20] V. I. Lenin. Una seria lección y una seria responsabildad. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 285.

[21] Central Comitte of the C.P.S.U(b). Op. cit., p. 216.

[22] Isaac Deutscher. Trotski: o profeta armado, 1879-1921. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 397 e Sydney D Bailey. Stalin’s falsification of history: the case of the Brest Litovsk treaty. Russian Review, v. 14, n. 1, 1955, p. 26.

[23] John W. Wheeler-Bennett. Brest-Litovsk: the Forgotten Peace, March 1918 . London : Macmillan, 1938, p. 191 (o livro de Wheeler-Bennett, um historiador conservador, permanece até o momento uma fonte incontornável pela sua riqueza de detalhes ) e Leon Trotsky. Ma vie. Paris: Gallimard, 1953, p. 453-454.

[24] V.I. Lenin. Para La historia de uma paz infortunada. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 118-126.

[25] V.I. Lenin. Discursos sobre la guerra y la paz en una reunión del CC Del POSDR(b), 11 (24) de enero de 1918. Acta. Op. cit., p. 132.

[26] V.I. Lenin. Discursos sobre la guerra y la paz en una reunión del CC Del POSDR(b), 11 (24) de enero de 1918. Acta. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 132.

[27] Isaac Deutscher. Op. cit., p. 398.

[28] Victor Serge. O ano I da Revolução Russa. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 199.

[29] Isaac Deuscher. Trotski: o profeta armado, 1879-1921. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 398-399; E. H. Carr. Op. cit., v. 3 e Jean-Jacques Marie. Op. cit., p. 156. Agradeço a Gabriel García higueras por ter me chamado a atenção sobre a interpretação de Jean-Jacques Marie.

[30] John W. Wheeler-Bennett. Op. cit., p. 192-193. Embora não cite a fonte do diálogo Wheeler-Bennett baseia sua reconstrução evidentemente em relato de Trotsky (cf. Leon Trotsky. Ma vie. Op. cit., p. 454).

[31] Victor Serge. O ano I da Revolução Russa. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 220.

[32] V.I. Lenin. Discursos sobre la guerra y la paz en una reunión del CC Del POSDR(b), 11 (24) de enero de 1918. Acta. Op. cit., p. 130. Ver, tb., Leon Trotsky. Ma vie. Op. cit., p. 451.

[33] Leon Trotsky. Ma vie. Op. cit., p. 440.

[34] Rosa Luxemburg. La responsabilitè historique. In: Oeuvres. Paris, Maspero, 1962, v. II, p. 43.

[35] Rosa Luxemburg. La tragédie russe. In: Oeuvres. Paris, Maspero, 1962, v. II, p. 47.

[36] Karl Libknecht. Militarismo, guerre, revolution. Paris: Maspero, 1970, p. 189. Leon Trotsky cita essa mesma passagem com a exceção da primeira e da última frase (cf. Leon Trotsky. Ma vie. Op. cit., p. 461-462) e, com base nela, comenta a evolução política de Libekknecht. Vis haud ingrata é uma violência não indesejada.

[37] Christian Rakovsky. The Foreign Policy of Soviet Russia. Foregin Affairs, Jun. 1926, p. 577.

[38] Ver os documentos em John W. Wheeler-Bennett. Op. cit., appendix X-XI.

[39] Ver a esse respeito John W. Wheeler-Bennett. Op. cit., cap. VI.

[40] V. I. Lenin. Por radio. A todos, en especial a la delegación de paz en Brest Litovsk. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 190.

[41] Cf. Victor Serge. O ano I da Revolução Russa. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 204-205.

[42] V. I. Lenin. A Trotski. Delegación rusa de paz. Brest-Litovsk. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 201.

[43] Apud John W Wheeler-Bennett. Op. cit., p. 227.

[44] Judah L. Magnes. Russia and German at Brest Litovsk: a documentary history of peace negociations. Nova York: The Rand School of Social Sciences, 1919, p. 134 (grifos meus). Segundo Bailey, essa resolução foi proposta por Sverdlov, o qual estava incondicionalmente aliado a Lenin nesse debate (cf. Sydney D Bailey. Stalin’s falsification of history: the case of the Brest Litovsk treaty. Russian Review, v. 14, n. 1, 1955, p. 27).

[45] Transcrevemos o texto conforme Urbano Rodrigues. A íntegra do informe de Lenin com a referida passagem está em V. I. Lenin. Palabras finales para el informe político del Comitê Central. 8 de marzo. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 315-323. Em uma nota de rodapé Urbano Rodrigues esclarece que sua citação de Lenin foi extraída de “V. I. Lenine, Textos extraídos das Obras Completas de Lenine, Ed. Estampa, Lisboa 1977, pág 260”. Não existe livro com esse título e, por isso, permanece desconhecida a fonte do jornalista Urbano Rodrigues. Na mesma cidade, na mesma editora e no mesmo ano, foi publicada uma coletânea de Lenin intitulada Contra o trotskismo (Lisboa: Estampa, 1977).

[46] Idem, p. 319.

[47] V. I. Lenin. Intervenciones contral las enmiendas de Trotski a la resolución sobre La guerra y La paz. 8 de marzo. In: Obras completas. Madri: Akal, 1976, v. XXVIII, p. 325.

[48] Cf. Raymond L. Garthoff. Op. cit., p. 78.

[49] Idem.

[50] Rosa Luxemburg. La revolution russe. Oeuvres. Paris, Maspero, 1962, v. II, p. 58 e 70.

[51] Idem, p. 65.

[52] Idem. 83 e 87

[53] Karl Liebknecht. Op. cit., p. 188, 189.